STF define que regra da Raposa Serra do Sol não vale para todas as terras
Ministros do Supremo avaliaram que as novas demarcações contínuas não são obrigadas a ter o mesmo modelo
Mais de quatro anos depois do julgamento da ação com base na qual o Supremo Tribunal Federal decidiu a favor da demarcação contínua das terras da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, o plenário da Corte rejeitou, nesta quarta-feira (23/10), os recursos (embargos de declaração) que contestavam omissões, contradições ou obscuridades no acórdão, em face das 19 condições estabelecidas pelo STF para a demarcação contínua da imensa área de 1,7 milhão de hectares (equivalente ao estado de Sergipe).
Contudo, com base no voto do ministro-relator Luís Roberto Barroso, a maioria do tribunal decidiu que tais condições valeram, apenas, para a Reserva Raposa Serra do Sol, não devendo ser “obrigatoriamente”aplicadas a novas demarcações do mesmo tipo. Ou seja, o entendimento fixado pelo plenário em março de 2009 “não é ato normativo vinculante”para outras situações similares, não vinculando juízes e tribunais quando do exame de outros processos relativos à demarcação de terras indígenas.
Mas, tendo em vista que a decisão confirmatória do STF da demarcação contínua da Raposa Serra do Sol vale como precedente, a Advocacia-Geral da União e o Ministério da Justiça deverão editar uma portaria estabelecendo as condicionantes para novas demarcações contínuas de reservas de índios.Ficaram vencidos os ministros Marco Aurélio e Joaquim Barbosa, que acolheram os embargos com efeitos modificativos (infringentes), por considerarem – na linha da Procuradoria-Geral da República – que o STF“extrapolou” sua competência, e traçou parâmetros alheios ao que constava do processo originário (ação popular).
Proclamação
O ministro Roberto Barroso fez, ao final da sessão, um resumo do seu voto, no sentido de não conhecer de três dos sete embargos; desprover os embargos de um fazendeiro e do Estado de Roraima; e acolher, “sem efeitos modificativos” os embargos do senador Mozarildo Cavalcanti(PMDB-RR), da PGR e de comunidades indígenas, “apenas para esclarecer que a decisão proferida tem a forma intelectual e persuasiva do STF,mas não é vinculante para juízes quando do exame de outros processos”.
Com o trânsito em julgado da decisão desta quarta-feira, todos os processos relacionados com a reserva Raposa Serra do Sol devem adotar as seguintes premissas: são válidas a portaria e o decreto de 2005 que demarcaram a área indígena; os particulares não podem persistir em pretensões possessórias relativas à reserva, os índios não podem explorar recursos minerais, a não ser com permissão da União. Neste último caso, no entanto, ficou registrado que a “coleta” é “expressão cultural do modo de vida de determinadas comunidades indígenas, sendo assim permitida.
No seu voto, o ministro Barroso acentuou que a questão da Raposa Serra do Sol foi resolvida pelo STF com base em ação popular, proposta,especificamente, contra a portaria do Ministério da Justiça que tratou da demarcação da reserva, em 2005, e que foi referendada em decreto do mesmo ano da Presidência da República.
Natureza das condicionantes
Embora estivessem em discussão, na sessão desta quarta-feira, apenas“embargos de declaração” (omissões, contradições ou obscuridades no acórdão relativo ao julgamento de 2009), a PGR, em manifestação assinada pela subprocuradora-geral Deborah Duprat, sustentava, em síntese: Não caberia ao STF “traçar parâmetros abstratos de conduta”, sem prévia discussão da sociedade, violando “não apenas as regras legais concernentes aos limites objetivo e subjetivo da coisa julgada, como também ferir os princípios do Estado democrático de direito e da separação de poderes”. Além disso, algumas das 19 condicionantes chegaram a: “atribuir uma primazia incondicionada ao interesse econômico da União em explorar recursos hídricos e pesquisa e lavra de riquezas minerais sobre os direitos indígenas; conferir “primazia completa e incondicionada” à política de defesa nacional”, ofendendo“interesses das comunidades indígenas”; atribuir “prioridade à tutelado meio ambiente, em detrimento dos direitos das comunidades indígenas”.
No entanto, os embargos da PGR foram afastados, e não foram acolhidos,em sua extensão, os demais, dentre os quais o mais longo era o do senador Morazildo de Melo Cavalcanti. Ele alegava, entre outras omissões: Situação de pessoas miscigenadas, ou seja, aquelas que descendem de casamento entre índios e brancos poderem permanecer na reserva, assim como aqueles que vivem maritalmente com índios ou índias; se as autoridades religiosas não indígenas, vinculadas às igrejas evangélica ou católica, localizadas no interior da reserva, bem como os templos religiosos já construídos seriam aceitos ou mantidos.
As condicionantes
As 19 condicionantes estabelecidas pelo STF, em 2009, para a demarcação contínua da Raposa Serra do Sol são as seguintes:
1 – O usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas pode ser relativizado sempre que houver como dispõe o artigo 231 (parágrafo 6º, da Constituição Federal) o relevante interesse público da União na forma de Lei Complementar.
2 – O usufruto dos índios não abrange o aproveitamento de recursos hídricos e potenciais energéticos, que dependerá sempre da autorização do Congresso Nacional.
3 – O usufruto dos índios não abrange a pesquisa e a lavra das riquezas minerais, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional, assegurando aos índios participação nos resultados da lavra,na forma da lei.
4- – O usufruto dos índios não abrange a garimpagem nem a faiscação,devendo, se for o caso, ser obtida a permissão da lavra garimpeira.
5 – O usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da Política de Defesa Nacional. A instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária,a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico eo resguardo das riquezas de cunho estratégico a critério dos órgãos competentes (o Ministério da Defesa, o Conselho de Defesa Nacional) serão implementados independentemente de consulta a comunidades indígenas envolvidas e à Funai.
6 – A atuação das Forças Armadas da Polícia Federal na área indígena,no âmbito de suas atribuições, fica garantida e se dará independentemente de consulta a comunidades indígenas envolvidas e à Funai.
7 – O usufruto dos índios não impede a instalação pela União Federal de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além de construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União, especialmente os de saúde e de educação.
8 – O usufruto dos índios na área afetada por unidades de conservação fica sob a responsabilidade imediata do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade.
9 - O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade responderá pela administração da área de unidade de conservação, também afetada pela terra indígena, com a participação das comunidades indígenas da área, que deverão ser ouvidas, levando em conta os usos,as tradições e costumes dos indígenas, podendo, para tanto,contar coma consultoria da Funai.
10 - O trânsito de visitantes e pesquisadores não-índios deve ser admitido na área afetada à unidade de conservação nos horários e condições estipulados pelo Instituto Chico Mendes.
11 – Deve ser admitido o ingresso, o trânsito, a permanência de não-índios no restante da área da terra indígena, observadas as condições estabelecidas pela Funai.
12 – O ingresso, trânsito e a permanência de não-índios não pode ser objeto de cobrança de quaisquer tarifas ou quantias de qualquer natureza por parte das comunidades indígenas.
13 – A cobrança de tarifas ou quantias de qualquer natureza também não poderá incidir ou ser exigida em troca da utilização das estradas,equipamentos públicos, linhas de transmissão de energia ou de quaisquer outros equipamentos e instalações colocadas a serviço do público.
14 - As terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico, que restrinja o pleno exercício do usufruto e da posse direta pela comunidade indígena.
15- É vedada, nas terras indígenas, qualquer pessoa estranha aos grupos tribais ou comunidades indígenas para a prática da caça, pesca ou coleta de frutas, assim como de atividade agropecuária extrativa.
16 – As terras sob ocupação e posse dos grupos e comunidades indígenas, o usufruto exclusivo das riquezas naturais e das utilidades existentes nas terras ocupadas, bem como a renda indígena, gozam de plena imunidade tributária, não cabendo a cobrança de quaisquer impostos, taxas ou contribuições sobre uns e outros.
17 – É vedada a ampliação da terra indígena já demarcada.
18 – Os direitos dos índios relacionados as suas terras são imprescritíveis, e estas são inalienáveis e indisponíveis.
19 – É assegurada a efetiva participação dos entes federativos em todas as etapas do processo de demarcação.
Luiz Orlando Carneiro