O sonho da casa própria pareceu mais próximo para a assistente administrativa Eliane Ferraz, 30 anos, por meio de um sistema alternativo de financiamento imobiliário. Ela é uma das 81 mil associadas da Associação Frutos da Terra Brasil (AFTB), uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) que oferece crédito para a compra de imóveis sem juros, sem comprovação de renda e com uma entrada de apenas 3% do valor emprestado, parcelada em 30 meses. Eliane contribui desde fevereiro de 2009 com R$ 120 mensais para a entidade, com a previsão de receber um empréstimo de R$ 120 mil no ano que vem para comprar seu primeiro imóvel. Sua expectativa pode não se concretizar. O Ministério Público do Rio de Janeiro acusa a AFTB de fraude financeira e conseguiu uma liminar neste mês para interromper as atividades da instituição.
Criada em março de 2007, a AFTB se propõe a eliminar o déficit habitacional brasileiro, estimado em 8 milhões de moradias, em um prazo de vinte anos. O projeto da entidade prevê a criação de um fundo formado por recursos de contribuições dos associados, doações de empresas e do governo. Neste sistema, por exemplo, um associado conseguiria R$ 100 mil para comprar uma casa após 30 contribuições mensais de R$ 100. Dos 81 mil associados, estão ativos apenas 15 mil – os demais deixaram de pagar a prestação. Em 2009, a receita da entidade foi de R$ 5 milhões, segundo demonstrativos financeiros disponíveis em seu site. Nos últimos três anos, a associação liberou R$ 18 milhões em créditos para cerca de 200 pessoas, de acordo com o seu fundador e presidente, Carlos Rotermund.A opção é mais atraente do que os financiamentos bancários tradicionais, porém, para o Ministério Público e para o Banco Central (BC), o sistema é insustentável e pode ser um golpe financeiro. Um parecer do BC sobre a AFTB, obtido pelo iG, compara o mecanismo a uma pirâmide financeira. Neste sistema, apenas os primeiros associados vão, de fato, receber o benefício em 30 meses, já que não haverá recursos suficientes para os últimos, disse o promotor Julio Machado, que está à frente do processo no Ministério Público. O laudo do Banco Central estima que para cada carta de crédito liberada são necessários 29 novos associados. Procurado pelo iG, o BC informou que não tem mais informações sobre o caso.
O promotor confirma que tem recebido críticas de alguns associados, mas, entende que eles não querem acreditar que não conseguirão os empréstimos. “Os 30 meses de contribuição não chegaram ao fim para a maioria dos associados. Eles serão futuros lesados”, afirma Machado. “Essa instituição se aproveita da fragilidade das pessoas. Se o sistema fosse possível, todo mundo iria querer. Mas é inviável”, completa.
O fundador da AFTB diz que a associação está sendo vítima de uma avaliação preconceituosa do Ministério Público. “Eles fizeram a análise do nosso modelo sem nos consultar adequadamente”, disse Rotermund. Ele insiste na viabilidade do sistema e diz que um laudo do escritório MS Cardim atesta a sustentabilidade da AFTB. No documento, a consultoria simula cenários de arrecadação e conclui que ele é viável, desde que a entidade receba também recursos de empresas ou do governo.
“É possível realizar as concessões de créditos para todos os associados na medida em que os recursos estejam disponíveis, sejam de empresas, do governo e ou empresas securitizadoras, além das amortizações dos financiamentos concedidos”, conclui o parecer. O iG procurou o MS Cardim, mas eles não retornaram os pedidos de entrevista.
A AFTB não recebeu recursos públicos e não divulga a relação de empresas doadoras. Em 2009, apenas R$ 20.758,25 de uma receita de cerca de R$ 5 milhões não é resultado de contribuições de associados, de acordo com o balanço da associação.
O sistema da AFTB permite que os associados consigam a carta de crédito antes mesmo dos 30 meses de contribuição, desde que consigam indicar novos membros. A cada indicação, os integrantes acumulam pontos e os melhores colocados em um ranking conseguem receber o crédito.
Foi assim que Alexandre Portella, 46 anos, dono de uma empresa de eventos, comprou sua casa após apenas sete meses de contribuição, no Rio de Janeiro. Ele ingressou na AFTB em dezembro de 2009, com contribuições mensais de R$ 100, e, em julho deste ano, recebeu sua carta de crédito. Em sete meses, ele ficou em primeiro lugar em um ranking de captação de novos membros para a entidade, com 170 indicações. Dois deles são da própria família: a esposa e o filho de Alexandre também ingressaram na AFTB, mas ainda não foram contemplados. Segundo ele, a família vai continuar a contribuir com a entidade para tentar receber as outras duas cartas de crédito, mesmo com a ameaça do Ministério Público. “Eu não sei de nenhum associado que bateu na porta do Ministério Público para reclamar que foi prejudicado pela AFTB”, diz.
O representante comercial Márcio Cordeiro, de Pouso Alegre (MG), não chegou a denunciar a entidade no MP, mas parou de contribuir com a associação quando não conseguiu seu empréstimo. Ele conheceu a AFTB por meio de uma amiga e se inscreveu no sistema com três cartas de crédito, para ele e para os dois filhos. Cordeiro deixou do emprego para trabalhar na divulgação da entidade e indicou mais de 200 pessoas para acelerar a contemplação.
Ele já tem casa própria, mas via o sistema como uma espécie de investimento. “Achei que com seis meses eu poderia ter empréstimos sem juros de R$ 100 mil, R$ 150 mil e R$ 200 mil e valia à pena deixar de trabalhar para me dedicar a isso”, diz. Cordeiro disse que seus pontos foram eliminados do sistema e que não recebeu o empréstimo. “Depois disso, não acreditei mais. Se fizeram isso comigo que representava a entidade na cidade, imagine o que vão fazer com os outros”, disse.
Cordeiro parou de pagar a parcela e pediu seu dinheiro de volta. A entidade disse que não vai devolver nada a ele, já que as contribuições são uma doação. Além de um montante de R$ 1.100 pago, Cordeiro inclui nas suas perdas o seu emprego – agora ele está desempregado. “Estou arrependido. Até divulguei no jornal da cidade os problemas que tive com a AFTB para alertar os associados e me eximir da responsabilidade do que vier a acontecer.”
Para o Ministério Público, a bonificação dos membros pela indicação de novos associados é inadequada para um sistema de crédito imobiliário. “Isso faz com que as pessoas tendam a ser mal informadas quando se inscrevem na entidade. Quem as indica tem interesse de que elas integrem a instituição”, afirma Machado. Cerca de 8% da receita da AFTB é usada para remunerar os associados que se dedicam a divulgar a entidade.
A AFTB está tentando reverter a decisão judicial para manter o funcionamento da Oscip. Até lá, não está mais aceitando novos membros, segundo o seu fundador. A associação continua a receber os pagamentos dos associados e a liberar cartas de crédito, diz Rotermund.
Por Marina Gazzoni, iG São Paulo