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segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Estudo de jovens propõe modelo para reduzir fila de transplantes no país


Belo Horizonte — Dois celulares ligados 24 horas e conferidos a cada momento e orelha em pé para escutar o telefone fixo e a campainha da casa. A ansiedade da auxiliar de escritório Mislene Márcia de Oliveira, 31 anos, é por uma chamada de seu médico. Neste mês, ela entrou na fila de transplantes de órgãos para receber um fígado. “Se eu for convocada, saio só com a roupa do corpo para o hospital. Mas não basta encontrar um doador, pois o órgão tem de ser compatível com o meu organismo”, diz a jovem, casada há oito anos e na expectativa de fazer a cirurgia o quanto antes para engravidar do primeiro filho. Não há, contudo, uma data prevista para realizar os dois sonhos de sua vida. Pode ser amanhã, pode ser daqui a anos. 

Uma solução para a fila de cerca de 27 mil pessoas que aguardam um transplante no país seria a criação de um mercado lícito e regulado de órgãos e tecidos — um assunto polêmico, muitas vezes rechaçado, mas que vem ganhando força até no meio acadêmico por ser uma alternativa às filas. 

Um estudo que sugere a criação desse mercado no Brasil, feito por alunos do curso de pós-graduação em direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), recebeu um prêmio internacional reconhecido na área — o da 19ª Jornada de Jovens Pesquisadores da Associação de Universidades Grupo Montevidéu (AUGM), realizada no fim do ano passado, no Paraguai. Os estudantes integram o Grupo Persona, da universidade, que se debruça sobre pesquisas em bioética avançada. O artigo, desenvolvido por Daniel Ribeiro, Mariana Lara e Nara Carvalho, foi coordenado pelo professor Brunello Stancioli, que hoje faz pós-doutorado no Centro de Ética Prática da Universidade de Oxford, na Inglaterra, instituição interessada em desenvolver melhor a ideia do mercado lícito de órgãos no Brasil. 

Por aqui, as maiores fontes de órgãos são cadáveres. O novo modelo poderia servir como um complemento, uma vez que também se aplicaria a doadores vivos. O formato final, contudo, não foi detalhado, mas seria uma espécie similar ao da Fundação Centro de Hematologia e Hemoterapia (Hemominas), em Minas Gerais, que recebe doação de sangue e faz a ponte entre o material doado e os hospitais do estado, embora não envolva dinheiro. A partir do momento em que há uma central mediada pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para receber os doadores de órgãos, pesquisar o seu histórico e fazer todo o procedimento, respeitando ordens jurídicas e regras médicas, o estímulo ao tráfico seria barrado. Trocando em miúdos, ninguém chega com uma garrafa de sangue roubado para doação, assim como não chegaria com um rim dentro de uma caixa para ser negociado, preveem os pesquisadores. O órgão seria pago pelo governo, que atenderia aqueles que estão na fila, em ordem e por compatibilidade.

A proposta de um mercado lícito de órgãos e tecidos, hoje proibido por lei no Brasil, incomoda a comunidade médica, mas dá um fio de esperança para quem há muito tempo espera uma resposta. O estudo feito na UFMG aponta que a escassez de órgãos e tecidos humanos é uma questão a ser enfrentada pelo sistema de transplantes de qualquer país. “Campanhas e incentivos à doação têm sido insuficientes para reduzir as filas de espera. Paralelamente, a venda de órgãos e tecidos é colocada como problema a ser resolvido, e quase sempre pelo direito penal. Contudo, esse comércio, pensado nas bases de um sistema lícito, pode ser uma alternativa”, diz Stancioli. 

Requisitos éticos 
Para o professor, a maioria dos argumentos contrários à venda é de cunho moral e fortemente paternalista, visando proteger a pessoa de si mesma, embora haja requisitos éticos complexos que um mercado regulado deva atender. “O debate acadêmico-ético-jurídico-médico encontra-se bem desenvolvido em países como Inglaterra e Austrália. No Brasil, no entanto, nem sequer se cogita tocar no assunto”, pondera.

De acordo com ele, a venda de órgãos, pensada em outras bases, não deveria ser primariamente rechaçada. “Um comércio de órgãos de pessoas vivas envolveria a possibilidade de que se possa vender órgãos considerados não vitais, aqueles sem os quais o doador pode continuar a viver”, diz. Segundo o professor, o órgão mais relevante para essa análise é o rim. “Trata-se de um órgão duplo, e o procedimento de transplante apresentaria relativamente poucos riscos para o potencial vendedor.”

Stancioli pondera que não é apresentada razão pela qual se adota postura absolutamente contrária à criação do mercado legal de órgãos. “Repete-se um discurso que condena o comércio de órgãos ao lhe atribuir supostos malefícios que parecem ser, na verdade, consequências da forma ilícita que ele assume hoje”, avalia. Durante o estudo, o grupo se deparou com informações que revelam que o mercado negro ou o tráfico de órgãos movimentam mundialmente mais de US$ 7 bilhões ao ano. 

Expectativa 
“O problema é mundial”, destaca o coordenador metropolitano do MG Transplantes, órgão mineiro responsável pela captação dos órgãos e tecidos, Omar Lopes Cançado Júnior. A média de doação em MG é baixa. Em 2010, girava em torno de sete doadores por 1 milhão de habitantes. Em 2011, subiu para 10,1. A expectativa é chegar a 15 por 1 milhão de habitantes. São Paulo é o estado com o maior índice: 17 por 1 milhão de habitantes. “Falta conscientização da população e dos próprios profissionais da saúde”, diz. Ele também não concorda com a criação de um mercado lícito de órgão e tecidos para reduzir a fila e o tempo de espera. “Pela lei, já é um mercado inviável. A luta da área médica é sempre contra esse comércio.”

Ideia é reprovada por associação
Embora a fila para um transplante seja grande, num cenário em que cresce o número de mortes violentas e pessoas com expectativa de vida maior, o presidente da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), José Medina Pestana, desaprova firmemente a criação de um mercado lícito de órgãos. “A população não quer, o que não impede a discussão, mas nós não aceitamos nem como uma sugestão razoável”, diz. Ele explica que, no Brasil, a doação de órgãos por pessoas vivas ocorre quando o parentesco com o paciente é de até quarto grau, além do cônjuge. Fora isso, só com autorização judicial. “Na maioria dos países é assim e, em todos os lugares, o transplante fora da família é bastante questionado. É um risco grande à vida, que só se justifica pelo afeto”, avalia. Para Pestana, a solução é avançar na possibilidade do uso animal, melhorar os equipamentos médicos e os tratamentos. 

A doação no país — excluindo a possibilidade da própria família fazê-la — é somente de órgãos de cadáveres, autorizada pela família do doador, sem a necessidade de um documento assinado pela pessoa que veio a falecer. A Espanha foi declarada líder mundial em transplantes de órgãos em 2010, com um taxa média de 32 doadores por milhão de habitantes. A meta do governo brasileiro é atingir 15 em 2015. O país, entretanto, é referência internacional na realização de transplante na rede pública de saúde — aproximadamente 95% das cirurgias são feitas de graça pelo SUS. O investimento anual do Ministério da Saúde no Sistema Nacional de Transplantes é de cerca de R$ 1,2 bilhão. 

A Política Nacional de Transplantes de Órgãos e Tecidos foi estabelecida e fundamentada pela Lei nº 9434/97, e tem como diretrizes a gratuidade da doação e o repúdio e combate ao comércio de órgãos. Toda a política está em sintonia com as leis nº 8.080/90 e nº 8.142/90, que regem o funcionamento do SUS.  

Longa 
Batalha 
O aposentado Carlos de Souza Rezende, 56 anos, levou seis para vencer uma batalha. O então motorista, casado e 
pai de três filhos, saiu 
da consulta médica surpreso com o diagnóstico de insuficiência renal e com a necessidade de hemodiálise. Ao mesmo tempo em que se tratava, aguardava na fila. A vitória foi em uma noite na qual, enfim, o médico telefonou para o tão aguardado transplante. “Não conheço nada sobre a família que fez a doação e me salvou. Só sei 
que o rim era de um motoqueiro.”
Fonte:Paola Carvalho