Família Bessie Allison
Uma das cenas mais chocantes do naufrágio do Titanic começa a ser representada pouco depois da uma hora da manhã de 15 de abril de 1912, quando o primeiro oficial Murdoch coordena o carregamento do bote salva-vidas nº 11. Diversos compartimentos de colisão estão inundados, o navio inclina-se fortemente para bombordo e para vante e já se sabe que vai afundar, que não há botes suficientes para todos e tampouco uma embarcação próxima o bastante para resgatar quem permanecer a bordo. Não há mais ilusões ou gestos de nobreza, apenas desespero e tumulto.
Partiram nove botes.
Restam onze.
Um camareiro se aproxima do bote 11, traz duas moças e as embarca. Uma delas é Alice Cleaver, de 22 anos, babá contratada pelo casal Hudson e Bessie Allison para cuidar da menina Loraine, de dois anos, e do pequeno Hudson, de apenas nove meses. Alice, ao tomar o bote, leva o bebê sem avisar os pais.
1h30min, Murdoch grita: "Lançar!"
O bote é arriado e parte.
A banda toca no convés dos botes, que dispõe de poucas luzes e onde a visibilidade não ultrapassa dez metros. Os passageiros da terceira classe, cujo acesso à plataforma foi impedido, forçam a porta da escadaria. Os homens portam punhais, facas, bastões, e lutam com a tripulação para abrir caminho. Alguns são mortos a tiros.
O capitão é visto a caminhar sem rumo, aparentemente em estado de choque, pois ignora o que acontece ao redor. Também são vistos Bessie Allison, com Loraine ao colo, e seu marido, que percorrem freneticamente os conveses superiores, à procura de Alice Cleaver. Em seguida partirão outros botes, mas Bessie se nega a embarcar. Como poderá fazê-lo, se pensa que o filho ainda se encontra no navio?
Partem os botes 14, 13, 15, 16, parte o dobrável C, e Bessie ainda corre de um lado para outro.
E chora.
E chama.
E os botes continuam partindo: o 2, o 4, o D.
A última notícia do casal e da menina, já nos minutos que antecedem o apagar das luzes do navio e o monstruoso epílogo, é a de que eles estariam abraçados na vizinhança da popa, a menina agarrada às pernas da mãe. O bebê, no bote 11, estava a menos de 400m de distância.
Uma vida de superação
Richard Norris Williams nasceu em Genebra, em 29 de janeiro de 1891, filho do advogado Charles Williams, que trabalhava na Suíça. Em 1912, o pai decidiu regressar aos Estados Unidos, e Richard, que era tenista, acompanhou-o, no intuito de frequentar a Universidade de Harvard e participar de competições norte-americanas.
Embarcaram no Titanic em Cherbourg. Na noite do naufrágio, não conseguiram lugar nos botes salva-vidas, tampouco usaram de violência ou solércia na tentativa de ocupá-los, como outros. Quando a proa submergiu e o mar varreu a plataforma, arrastando os dois últimos botes dobráveis, o pai entregou ao filho um frasco de bebida alcoólica e ambos se lançaram à água gelada.
A inclinação do navio fez com que tombasse a primeira das quatro chaminés, matando diversas pessoas, inclusive o pai de Richard. O jovem tenista quase foi atingido e a onda resultante o arremessou para longe. Ele recomeçou a nadar e avistou uma sombra à frente: era um dos botes à deriva, o dobrável A, já alcançado por mais de duas dezenas de pessoas. A lona das laterais não fora armada, reduzindo o bote ao seu fundo chato meio submerso. Os náufragos traziam água e gelo até a cintura. Nas horas seguintes morreriam 11.
Todos os sobreviventes foram resgatados pelo vapor Carpathia. Os do dobrável A tinham sido terrivelmente afetados pela hipotermia. O médico do navio, examinando as enregeladas e aparentemente mortas pernas de Richard, recomendou a imediata amputação, na época um procedimento comum para tais e graves casos. Ele se opôs.
Nos dias seguintes, exercitando-se intensamente, recomeçou a andar, meses depois retornou ao tênis. O médico que desejava cortar suas pernas há de ter feito um reexame de sua medicina: Dick Williams, como passou a ser conhecido, veio a ser um extraordinário atleta, vencedor de grandes torneios, como o de Wimbledon (1920, duplas), e medalhista de ouro na Olimpíada de Paris (1924, duplas mistas). Durante treze anos participou da equipe norte-americana na Taça Davis e, durante sete, foi inscrito no ranking dos dez melhores tenistas do mundo.
Quando os Estados Unidos declararam guerra à Alemanha, em 1917, ele se apresentou como voluntário, servindo na França com tamanha bravura que o governo francês o condecorou com a Croix de Guerre e lhe outorgou o título de Chevalier de la Légion d’Honneur. Dick Williams morreu em 2 de junho de 1968, aos 77 anos. Um de seus netos conserva o frasco que ele recebeu do pai e há de ter bebido na álgida noite sem lua do Atlântico Norte.
*Faraco em trecho de O Crepúsculo da Arrogância, L&PM, 2006
Fonte:Dc/ZERO HORA